mercredi 8 décembre 2010

Conto convosco para dar um sentido a este tempo sem sentido


A minha visão de Portugal é uma visão poética, uma visão integradora, de que fazem parte “a primeira tarde portuguesa”, essa belíssima expressão com que Alexandre Herculano se refere à vitória de Afonso Henriques na Batalha de S. Mamede, assim como as lendas, os cantares de amigo, as Flores de Verde Pinho de D. Dinis, as crónicas de Fernão Lopes, os autos de Gil Vicente, o “Comigo me desavim” de Sá de Miranda (que anuncia, uns séculos antes, Mário de Sá Carneiro), a revolução de 1383, o Manoelinho de Évora, Fernão Vasques e Álvaro Pais a convocar o povo de Lisboa, o quadrado dos Atoleiros e a Batalha de Aljubarrota (de que hoje em dia é quase inconveniente falar).
E, depois e, até, sobretudo esse momento de verdadeira fundação espiritual que é o da escrita de Os Lusíadas e de toda a Lírica de Camões. Não só por nos ter dado uma epopeia em que o herói é o próprio povo português e a sua História, como por ter criado, não apenas uma nova linguagem poética, mas a língua portuguesa tal como hoje a escrevemos e falamos.
Ou como quem nunca mais foi capaz de a escrever assim, porque nunca mais ninguém voltaria a juntar o rude que e o terrível porque para os transformar em ritmo, música, poesia em estado puro.
Claro que eu podia vir por aí fora, cair em Alcácer-Quibir e regressar com aquele fantástico romeiro que, no Frei Luís de Sousa, quando lhe perguntam quem é aponta o seu próprio retrato e responde: Ninguém.
Às vezes tenho a sensação de que todos somos esse romeiro. Ou de que ele até certo ponto se confunde com Portugal – “essa promessa não cumprida”, de que falou António Sérgio.
Também podia voltar atrás e partir de Coimbra com o Infante D. Pedro, o primeiro grande europeu, para lavar a afronta em Alfarrobeira, essa escaramuça onde estão sempre a bater-se todos aqueles que, em diferentes momentos históricos, têm lutado pela liberdade e o espírito crítico contra a mentalidade dogmática e o espírito de seita.
Visão poética que, evidentemente, passa pelo desembarque de Garrett e Herculano no Mindelo e pela inquietante e subversiva pergunta de Antero que hoje, de certo modo, se está aqui a repetir: “Mas, meus caros senhores, é possível viver sem ideias?”
Visão poética que desde as primeiras sílabas das primeiras trovas, até às estâncias d’ Os Lusíadas, chega a Miguel Torga que nos interpela a “nunca descrer / do chão duro e ruim” e, antes, a outro momento fundamental e fundador: Fernando Pessoa e o seu “Portugal – futuro do passado”.
Eduardo Lourenço, num ensaio sobre a minha escrita, referiu-se à “nostalgia da epopeia”. Sim. Eu tenho essa nostalgia. É filha de uma certa visão de Portugal. Uma visão que é incompatível com qualquer forma de abdicação. Uma visão que não se resigna àquele “país quietinho” de que falou Teixeira de Pascoaes, o poeta que disse que a saudade portuguesa é uma saudade prospectiva, uma saudade do futuro.
Eu não sei se Oliveira Martins tem razão quando afirma que “Portugal é uma nação mas não uma nacionalidade”, ou seja que só existe por um acto de vontade das suas elites. Ou se a razão está do lado de Jaime Cortesão e dos seus “Factores democráticos da formação de Portugal” e daquela convergência dos caracteres atlânticos que são preexistentes ao facto político da fundação e explicam e justificam a nacionalidade e a nação.
A atlanticidade é a trave mestra da nossa identidade. “Há só mar no meu país”, dizia, não por acaso, Afonso Duarte, um grande poeta injustamente esquecido.
Creio que tanto Oliveira Martins como Jaime Cortesão estão certos: o mar, os portos, o comércio, a atlanticidade e a vontade formaram e fizeram Portugal, a nacionalidade e a nação.
Ao longo dos séculos vivemos e ultrapassámos muitas crises. Se é que não temos vivido quase sempre em crise. Parece-me, no entanto, que estamos perante uma crise de novo tipo.
Nos últimos trinta anos Portugal passou por transformações sem paralelo. Da ditadura para a democracia, do império para o regresso às origens, da agricultura, das pescas e das indústrias tradicionais para o sector terciário, com consequências não só económicas como sociais, culturais e territoriais, nomeadamente a desertificação do interior e superlotação no litoral e à volta das duas principais cidades, de país entalado entre a Espanha franquista e o mar para a abertura ao mundo e a adesão à Europa, num processo depois acelerado com a globalização, que trouxe consigo, para além de novas oportunidades e conhecimentos, a desregulação, as receitas únicas, o aumento da exclusão e das desigualdades, o risco de uniformização cultural e de diluição ou destruição das singularidades nacionais.
A incidência destas transformações não foi acompanhada por uma reflexão tendente a reposicionar-nos perante nós próprios e o mundo. Falta a Portugal uma nova visão estratégica que na era inevitável e irreversível da mundialização permita salvaguardar a sua identidade. Tal não é possível sem voltar à História, à muito antiga e à mais recente.
Somos europeus por direito próprio. Devemos estar no centro e na vanguarda da construção europeia. Mas tal não significa uma diluição de Portugal nem a ruptura com o outro lado de nós mesmos: a África, o Brasil, as várias partidas do mundo por onde os portugueses passaram. Não temos poder militar nem força económica. Na Europa e no mundo do mercado contamos pouco, mas contamos no da História, da língua e dos afectos. Entre os países do mesmo peso demográfico, Portugal é um dos poucos que pode ser no mundo um actor global.
No Contrato que apresentei nas últimas eleições presidenciais, afirmei que devemos voltar a dizer com orgulho a palavra Pátria e dar-lhe um sentido de modernidade e de futuro. Alguns ficaram surpreendidos, mas eu estava a repetir em prosa o que tinha começado a dizer em verso desde a publicação do meu primeiro livro “Praça da Canção”. E que uma vez mais hoje venho aqui reafirmar.
Tenho vindo também a afirmar que para além do défice das contas públicas, há outros défices, o social, o da educação, o da igualdade, o do emprego, o da saúde, o da cultura. Há um défice de confiança e de esperança.
Portugal não pode rimar com tanta desigualdade, tanto desemprego, tanta pobreza, tão grande desequilíbrio na distribuição dos rendimentos.
Não podemos permitir que a persistência de todos estes défices dê lugar um dia a outro bem mais doloroso: um défice de Portugal e um défice de democracia.
Ao contrário do grande poeta Alexandre O’Neil, eu nunca senti Portugal como um remorso. Da minha visão da História faz parte a convicção de que Portugal é um destino. Um destino que está nas nossas mãos e pelo qual, mais do que nunca, todos somos responsáveis.
E é por isso que me volto a candidatar à Presidência da República.
Porque a autonomia nacional está em risco perante a ameaça de uma nova forma de ditadura: a ditadura dessa entidade mítica a que se chama mercados financeiros.
Porque a Europa está a ser desconstruída com o reforço do centro em desfavor dos Estados periféricos e com os contribuintes a pagarem a socialização das perdas do sistema bancário.
Porque o capitalismo financeiro está completamente desregulado e a tentativa de aproveitar a crise para pôr em causa direitos sociais e serviços públicos que custaram a luta de muitas gerações constitui um retrocesso civilizacional.
E porque esse retrocesso afecta gravemente a qualidade da democracia.
É um problema político, mas é também um problema de cultura e de civilização.
E é por isso que os escritores e artistas são mais uma vez chamados à intervenção cívica.E é por isso que conto convosco.Para que juntos tentemos dar um sentido a este tempo sem sentido.E para que me ajudem a reconstruir a palavra esperança.
Viva a República, viva Portugal.



8 de Dezembro de 2010

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