dimanche 24 octobre 2010

"Cunhal era fascinante, tinha uma grande cultura"

Em tempo de campanha e pré-campanha, sobra-lhe tempo ainda para a escrita?
Em tempo de campanha é difícil, embora a escrita apareça sempre no inesperado. Costumava dizer que pode escrever-se mesmo na boca de um canhão, mas a campanha é muito absorvente. O cargo de presidente vai pôr restrições muito maiores.
Quando publicou o seu primeiro livro tinha 30 anos. Foi tarde ou foi cedo?
Tinha 29! Foi quando devia ser.
Se for eleito, pretende continuar a escrever?
Acha que o País lhe daria tempo ?
Os presidentes da República têm todos escrito, publicam livros mas de outra natureza. Depende da maneira como se organiza. Conheci Mitterrand, de quem tive o privilégio de ser amigo, e ele reservava certas horas por dia para a leitura, para a escrita, para ir às livrarias, para passear...
Esse seria o seu modelo?
Bom, o Mitterrand é o Mitterrand... Mas o próprio Mário Soares, como PR, tinha muitas horas de leitura, de conviver com artistas, com poetas, com pintores.
Acredita em políticos que não tenham esse tempo?
Preocupa-me (risos). Acho que a Nação não é só economia, não é só contas. Também é esse outro lado da vida, também é o futebol, o gosto de ler um bom livro, de ver um bom filme, de ler poesia.
Quais são as figuras políticas ou intelectuais que mais marcaram a sua formação?
Figuras políticas de referência tenho aqueles homens que marcaram o imaginário da minha infância. O Churchill, o De Gaulle, são gigantes da história, o Roosevelt. Depois, o Olof Palme, homem extraordinário e verdadeiro social-democrata. Um aristocrata que era verdadeiramente um socialista...
Ainda o conheceu?
Conheci, tenho até uma fotografia com ele tirada na Suécia... (e continuando a resposta) Mitterrand, Felipe González. Depois, em Portugal, sem dúvida nenhuma o Fernando Piteira Santos. Um grande homem político, um grande jornalista, um homem que podia ter escrito muitos livros. Um dos melhores prosadores que conheci. Mas a sua intervenção como jornalista impediu-o de fazer a obra que podia ter feito. O Álvaro Cunhal, Mário Soares, Salgado Zenha foram pessoas...
Que relacionamento tinha com Cunhal?
Tive um relacionamento bastante estreito num período da minha vida. Chegámos a viver uns tempos na mesma casa.
A seguir ao seu regresso a Portugal?
Não, antes, no exílio. Depois do meu regresso a Portugal encontrávamo-nos pouco, a não ser nas recepções oficiais, porque aí houve, como sabe, posições diferentes.
Como era ele no dia-a-dia dessa vivência?
Era um homem fascinante. Um homem de uma grande cultura, muito diferente daquele ar carrancudo com que ele aparece muitas vezes em cena. Era um homem extremamente afável. Gostava de pintura, sabia pintar, traduziu livros de Shakespeare, era capaz de falar de poesia.
Teve uma educação católica. Como se relaciona hoje com a religião?
Relaciono-me bem com a religião. Havendo a laicidade que está consagrada na Constituição, cada um no seu papel, acho que a Igreja tem um papel muito importante em Portugal, sobretudo na obra social que faz. Sem muitas obras sociais da Igreja, as dificuldades de parte do povo português seriam piores ainda.
Depois de 48 anos voltou em Março deste ano a Nambuangongo, em Angola, onde esteve na Guerra Colonial. Que emoções lhe despertou esse regresso?
Sentimentos muito fortes. Tão fortes que até chorei, uma coisa que não costumo fazer em público. Pelos amigos com quem lá estive e que já cá não estão (Fernando Assis Pacheco, que já morreu)... A campa de um soldado português que estava ali enterrada e que mandei limpar...Foram períodos intensíssimos em que se vivia entre a vida e a morte, uma fronteira muito curta.
E, dos dez anos que se seguiram de exílio em Argel(1), que recordações tem desse tempo? Não acha que foi tempo perdido?
Não. Foi tempo de juventude, vi muita coisa, aprendi muita coisa, conheci também alguma gente fantástica. Em Argel nessa altura estava toda a gente que queria mudar o mundo, o Eldridge Cleaver, o Carmichael, os Panteras Negras, o Guevara, que por lá passou, os africanos, até o Cubillas, que queria libertar as Canárias.
O Nobel da Literatura foi recentemente atribuído a Mario Vargas Llosa. Foi uma decisão justa?
Foi. Desta vez foi justa e já podia ter sido há mais tempo, embora haja outros autores que possam tê-lo... O Jorge Luis Borges nunca o recebeu... Não percebo porque o Philip Roth, o escritor americano de quem gosto muito, não o recebeu...
O que matou da última vez que foi à caça?
Perdizes.
Quando viu o Benfica ao vivo a última vez?
Já foi o ano passado, este ano ainda lá não fui.
Gostaria um dia de ser recordado mais como poeta ou como presidente da República?
Eu, como poeta, vou ser recordado. Como PR, não sei... Primeiro não sei se vou ser PR e, se o for, não sei se serei recordado. Como poeta com certeza que o vou ser!

(1) Exílio em Argel - Para escapar à PIDE, Alegre refugiou-se em Argel, em 1964, onde foi locutor da rádio Voz da Liberdade e escreveu 'Praça da Canção'
In DN, 24/10/2010

Aucun commentaire:

Enregistrer un commentaire